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A moura a fiar... tramas históricas


Durval Muniz prolifera as figuras artesãs correlatas da arte historiográfica: somos tecelãs, bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras, constituindo o próprio tecido do tempo. J. Schwengber

Resolvi começar essa série pela infância, já que é gênese de tudo.


Em 1998 foi a primeira vez que compartilhei um dia das crianças. Naquele 12 de outubro, eu tinha acabado de completar 6 anos, e minha irmã, 5 meses. Lembro de mamãe retirar uma caixa de cima do guarda-roupa com algo dentro que me acompanhou por anos. Só não até hoje porque infelizmente tudo é perecível, especialmente quando deixamos num canto do sótão exposto a bichos e poeira.


Ganhamos da minha tia a coleção nana-nenê: uma história para cada dia, da Sonia Robatto, publicada pela Editora Globo. Eram 12 livros e 12 fitas K7, um par para cada mês do ano. As cores se alternavam: Vermelho, Azul, Verde e Amarelo. Cada página era um dia e uma história diferente, e algumas se desenrolaram feito novela (novelo!) no decorrer do ano. Até em ano bissexto eles pensaram. Foi minha primeira coleção de livros, que eu lia e relia — e amava admirar o traço dos artistas — sem conseguir respeitar o “uma história para cada dia”.


Duas crianças abraçadas no dia das crianças
1998: Eu, Evellin (Nenê) e a fita K7 amarela da coleção nana nenê

Por que vim falar de livros infantis? Como sou eu mesma bordadeira, assim como minha tia que me deu os livros, decidi estudar esse ofício a partir da História, meu carro-chefe. Então criei o projeto Fiandeiras aqui no Estúdio, escolhendo seis grandes temas que se costurem entre si. Deste modo, podemos pensar a importância do trabalho artesanal, produzido à mão e com paciência, em etapas que demandam tempo, solitude, foco, repetição, e que têm ainda o poder de evocar a Memória.



O primeiro é um conto folclórico que vou dizer já já, e que foi reforçado pelo Destino para que se escrevesse. Explico: perdi os livros e K7 por causa do Tempo agindo no quartinho (uma espécie de sótão), seja em forma de chuva, poeira, fungos, animais que se alimentam de celulose. Lembro de ter procurado muito a página desse conto na internet, porque não tinha nada além da lembrança do que decorei quando menina. Não sabia qual mês havia sido publicado, nem nada. Queria referências visuais, compreende? Bom, pensei, vou ter que me virar com texto. Isso já me bastou para achar a origem.


Dias depois, já esquecida, fui buscar não sei o quê no tal quartinho, e esse objeto não encontrei. Mas, ao olhar num móvel, embaixo de outras coisas, encontrei a edição de Fevereiro do livro, e comecei a folhear para ver autores, ilustradores, coisas assim. O que estava na página do meio? O conto.


E é de Destino que falaremos pelos próximos meses.


A moura e a mosca. E a moura a fiar…



É um texto dividido em 21 e 22 do livro Fevereiro. O final desafia a criança a recitar tudo o que acabou de ler. Eu, que adoro um desafio, decorei tudo:


Estava a moura em seu lugar Foi a mosca lhe fazer mal A mosca na moura, a moura fiava Coitada da moura Que tudo a ia inquietar!

E assim correm doze estrofes, que eu lia e ouvia na K7. É sempre alguém que vem inquietar alguém, um belo exemplo do ciclo da natureza e/ou cadeia alimentar. É uma história de movimento, de predador e presa, e hoje me faz pensar no filme Crash: no limite, ou mesmo em Efeito Borboleta, Babel, ou outro que sugira uma cadeia de eventos.



A moura é importunada pela mosca, que é importunada pela aranha, que é importunada pelo rato, depois pelo gato… até chegar no Homem, que só é detido pela Morte. Parece que esse tema vai e vem na minha vida, não é mesmo?


Como bordadeira e historiadora, essa cadeia de eventos faz todo o sentido: um ponto sustenta o outro, e nesse bordar pontinhos muito bem contados e aparentemente disformes, o que se tem no final é uma trama com desenho e sentido, assim como a vida.



Lado a Lado (Stepmom), com Susan Sarandon e Julia Roberts. Nesta cena a personagem de Susan, que tem uma doença terminal, dá de presente de natal uma capa e uma colcha para os filhos, cada tecido costurado por ela com fotografias de momentos importantes da relação que teceu com as crianças.

Veja, até no livro, mesmo que a autora não tenha pensado nisso, o conto é dividido e deixado para o dia seguinte.


— Mas a história não acaba aqui, não. Amanhã ela continua.

Porque a vida continua. A vida é um grande plano que acontece em processos, eventos, projetos, como este aqui. Ou: a vida é um grande pano que se tece em pontos, bordados, costuras, ziguezagues, arremates e cortes. São ações que causam reações, que causam reações, e por aí vai. Então, bordar é pensar e tecer a vida.


É mais um conselho que te dou: não seja impaciente. Mesmo que as coisas estejam confusas ao ponto de não conseguir fazer nada, não se desespere, não queime os fusíveis nem comece a puxar nenhum fio em particular antes da ocasião apropriada. Compreenda que se trata de um processo demorado e que deve progredir lentamente, um passo de cada vez. Acha que é capaz disso? Haruki Murakami

Quando bordamos um pano, quando costuramos um caderno, quando contamos uma história, temos conosco duas ferramentas primordiais: o Tempo e a Memória. O Tempo desenrola o fio, que vai tomando forma entre nossos dedos e agulhas. Contamos pontos enquanto assistimos televisão, enquanto conversamos com um familiar, amigo, animal ou planta (eu converso até com o vento), enquanto lembramos de não esquecer que o açúcar está acabando e precisa ser reposto... bordar é um enquanto. E esses pontos do enquanto são o Tempo que passa, e que passa ativo enquanto a trama se forma. E a trama é Memória. Tecer é esperar, tecer é esperança: no trabalho que está sendo feito, no Tempo que está passando, no iniciar o trabalho seguinte. Na vida que acontece.



Enquanto elabora sua tese e se prepara para se casar, Finn Dodd (Winona Ryder), uma jovem mulher, vai morar na casa da sua avó (Ellen Burstyn). Lá estão várias amigas da família, que preparam uma elaborada colcha de retalhos como presente de casamento. Enquanto o trabalho é feito, ela ouve o relato de paixões e envolvimentos, nem sempre moralmente aprováveis mas repletos de sentimentos, que estas mulheres tiveram. Neste meio tempo ela se sente atraída por um desconhecido, criando dúvidas no seu coração que precisam ser esclarecidas.

A trama da História


Esse conto também exemplifica bem o fazer historiográfico. Podemos e devemos delimitar nossas pesquisas, temporal e espacialmente; é importante porque tudo e todo tempo é História e somos humanos, recorremos apenas a fragmentos, não interessa o quão documentado foi um tema. Mesmo assim, devemos ser éticos e capazes de compreender (nos sentidos de apreender e depois de entender) que em cada trama há pontos e nós que concordamos e que discordamos, mas jamais devemos negligenciar nenhum deles. Um ponto sustenta o outro, há ali uma dialética (tese + antítese = síntese), um enredo, uma moura que foi importunada por uma mosca, um povo que foi colonizado por outro, e assim sucessivamente.


Digo isto porque neste século — espero que não passe desta década, mas sejamos francos: só vai piorar — há a tendência em pouco estudar, compreender, contextualizar, historiografar com profundidade temas ou povos que sim, são amargos para outros temas ou povos. Mas escrever bem a história de um povo injustiçado, é justamente esmerilhar a história do povo que cometeu aquela injustiça. Não “deixar de falar”, “deixar de ler”, etc. Pelo contrário: ler com energia, com ganas de apontar erros etc. e tal. Afinal, por que houve aquela injustiça? Quem a cometeu? Onde? Quando? Como? Qual a perspectiva do injustiçado? O que isso causou? Enfim, questões básicas que um investigador deve levantar.


O ofício historiográfico, como vemos, opera técnicas para bem tramar os fios. Para que o trabalho de artesania possa ocorrer ele precisa de matérias primas. As linhas de nossas tramas são os rastros, vestígios, inscrições, testemunhos. Na coleta de seus materiais, o profissional da história atua como na pesca, na caça ou mesmo no furto. — J. Schwengber a partir da leitura de Durval Muniz de Albuquerque Jr.

A moura


A Moura. 1886.

Esse conto é português de influência árabe, já que a protagonista é a moura publicada na série/capítulo “Romances e Xacaras: origens do portuguez e do mestiço. Transformações pelo mestiço” [1], sendo xacara uma “canção narrativa de versos sentimentais, no passado, popular na península Ibérica, e de origem árabe”. Essa série faz parte da pesquisa do polímata sergipano Sílvio Romero na década de 1880, e publicada em 1886 em Lisboa. Esse canto popular foi coletado em Pernambuco, a mais rica das províncias brasileiras (a primeira independente de Portugal e, antes disso, a nossa primeira capitania), então vemos como é antigo no Brasil, imagine no Mediterrâneo.


Romero tinha, com essa compilação que Teófilo Braga chamou “documento ethnologico”, o intuito de levantar o histórico do que constituiria a formação de uma nacionalidade brasileira. Difícil tarefa, já que em nossa gênese [2] somos uma costura de povos do mundo inteiro, com e sem opressão e violência. Mas ele mesmo cita esse tipo de pesquisa em outros lugares como Alemanha e Islândia, sendo impossível não lembrar dos irmãos Grimm com os contos de fadas, e Snorri Sturluson com as Eddas.


os Cantos populares do Brazil apresentam um duplo valor, porque trazem os themas tradicionaes sobre que a nova litteratura brazileira tem de assentar as suas bases orgânicas, e porque são a irradiação remota dos vestígios tradicionaes deixados pelo povo portuguez na época da sua grande actividade e expansão colonisadora.

A título de curiosidade: Romero explica o motivo de os Cantos populares do Brazil serem impressos em Lisboa, sendo que nosso país já possuía editora no então segundo reinado:


Resta-nos apenas agradecer a todos aquelles que nos ajudaram n'esta improba tarefa, e especialmente aos snrs. Théophilo Braga e Carrilho Videira, que tão galhardamente se offereceram para salvar das traças esta coliecção, que foi repellida pelos livreiros e editores brazileiros com o mesmo horror com que se foge da peste.

Outra versão


A versão mais fácil de ser encontrada é a mesma do programa Rá-Tim-Bum, “A Velha a Fiar”. Faz parte de artigos e planos de aula da pedagogia. Eu, por memória afetiva, conteúdo histórico e morenice, prefiro a versão da moura, mas vale a pena assistir com nostalgia a atuação de Arthur Kohl.



Sonia Robatto


É uma atriz, bibliotecária e escritora de livros infantis nascida em Salvador (BA) em 1937. Seu primeiro original foi publicado pela Editora Abril em 1969: História da Sapa Cristina (minha xará, presente nesta coleção e neste volume de fevereiro). Sendo editora da Revista Recreio, foi responsável pelo lançamento de Ana Maria Machado, Ruth Rocha, entre outros. Trabalhou com o também baiano, cantor Tom Zé, entre outro artistas de renome da MPB no projeto da Coleção TABA.


Em 2021 Sonia lançou o audiolivro Histórias de Vovó Candinha, disponível no YouTube. Mais um retalho que revive a colcha do nana nenê:


O audiobook “Histórias de Vovó Candinha” é uma iniciativa voltada principalmente para crianças a partir de 5 anos de idade e conta com 50 histórias tipicamente brasileiras escritas e narradas pela atriz e escritora Sonia Robatto. As histórias que compõem o audiobook foram selecionadas entre as 365 da coleção de fascículos lançados pela Editora Abril “Nana Nenê, uma história para cada dia”. Neste projeto vocês podem encontrar histórias criadas pela autora e histórias tradicionais brasileiras a fim de divertir, fazer sonhar e refletir. Ao todo, são aproximadamente 150 minutos de histórias contadas e reunidas em uma playlist, dividida em dez episódios com cerca de 15 minutos cada e 5 histórias por episódio.

Sílvio Romero


Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) foi um polímata brasileiro, nascido em Lagarto, Sergipe. Cursou Direito, foi Deputado Provincial e depois Federal, membro da Academia Brasileira de Letras e estudioso de literatura, filosofia, sociologia, e especial contos e cantos populares do Brasil, que tinha apenas trinta anos de constituição independente, quando ele nasceu.


O texto não aborda o tema a seguir como nuclear, mas fica a sugestão para quem quiser estudar Silvio Romero pela perspectiva do racismo — que está inegavelmente unido à sua ideia de nacionalismo, do que seria a criação de uma nação brasileira. Já na introdução do livro que encontrei A Moura, é possível ver como se responsabiliza negros, indígenas e jesuítas pela perda da preservação da tradição literária portuguesa, por “falta de educação” ou “excesso de catequismo”. Os trabalhos abaixo foram bem pesquisados por um professor querido.


  • Machado de Assis e Silvio Romero: escravismo, “raça” e cientificismo em tempos de campanha abolicionista (década de 1880) — Alberto Luiz Schneider (Scielo)

  • Capítulos de História Intelectual: Racismo, Identidades e Alteridades na Reflexão Sobre o Brasil — Alberto Luiz Schneider (Editora Alameda)

 

1. Não vou atualizar a grafia dessas palavras porque está legível, e é interessante perceber como nossa língua também mudou nesses 140 anos. Isso também nos distancia do objeto de estudo, dando aquele sentimento de “tempos antigos”, que penso ser importante para não cairmos em anacronismos e julgamentos indevidos com qualquer moral contemporânea. Julgar moralmente e opinar com base em ideologias não é fazer uma crítica profunda e analítica, está longe disso: é criar uma perspectiva contemporânea sobre um assunto passado, muitas vezes sem antes compreender esse passado.

2. Lembremos que o Brasil, independente e com constituição, só existe desde 1822. Não pensemos “Brasil” antes de 1500, por exemplo.


Referências


ROBATTO, Sonia. Fevereiro. In: Nana nêne: uma história para cada dia. São Paulo: Editora Globo, 1992.

ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brazil. Vol. 1. Lisboa: Nova Livraria Internacional, 1886. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4549.

SCHWENGBER, Jacson. Tecer o tempo, proliferar as diferenças: a escrita e a teoria da história de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/129997.


 

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